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Leia parte do primeiro capítulo

   

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-   Prisioneiro 3.029! 

   A voz autoritária e metálica, propagada pelo alto-falante, ecoou no ambiente escaldante da prisão. Trinta graus à sombra.

   Tarquínio Esperidião mal levanta o olhar, perdido em seus pensamentos. No momento em que começa este relato, seu campo de visão se reduz aos limites do pátio reservado aos detentos para tomar sol, sob a vigia dos guardas com seus fuzis embalados. Seu maior interesse é manter-se a parte dos demais prisioneiros. Anda para lá e para cá na rotina férrea do presídio, ao lado dos piores marginais, alguns deles celebridades criadas pela imprensa. Aguçados, os sentidos de Tarquínio detectam tudo em sua volta, especialmente o ranger de ferro abrindo ou fechando as grades, o olhar de revolta e insatisfação dos recém-chegados, a dormência e apatia dos já acostumados com o cativeiro. Ele, naturalmente, pertence ao último grupo, com o agravante do isolamento extra a que se impôs. A barba sempre por fazer, aparada uma vez por semana por exigência da direção da penitenciária. Exigência é um eufemismo. Imposição pela força calha melhor. Fez cara feia ao ser chamado para o primeiro corte. Foi o bastante. Logo apareceram dois brutamontes de cassetete na mão, um par colorido, composto de um egresso da zona de emigração rio-grandense e de um afrodescendente, ambos para lá de dois metros de altura. O louro ainda insinuou que o cassetete era para ser enfiado e o crioulo deu um sorriso de antecipação. Ainda estava fresca na memória de Tarquínio a lembrança dos dois enfermeiros, igualmente encorpados, que lhe empurraram goela abaixo o barbitúrico que recusava engolir, quando internado na Clínica de Repouso de Jacarepaguá. E cassetete, está claro, não é coisa para ser engolida. Antes pelo contrário.

   - Prisioneiro 3.029! Repetindo: visita pro 3.029!

    O alto-falante anunciou pela segunda vez a visita, agora em tom de impaciência.  

   Tarquínio não se moveu, sabendo que o número era o seu. Foi traumática, mais do que isso, trágica, a última visita que tivera. Às vezes, ainda via, ao fechar os olhos, o deboche estampado no rosto da menina de sete anos e sentia a sanha que o acometeu ao arrancar, das mãos do guarda, o fuzil. Disparou-o em seguida, estraçalhando o peito de irmã Patrícia, transformada em escudo de seu alvo, nada menos do que a bruxinha em seus braços, atirada no último momento para a policial que a acompanhava. O olhar matreiro da menina o atingiu de cheio, enquanto era levada da cena do crime nos braços da agente.

   A voz continuou sem a chamada numérica, valendo-se agora do alfabeto. O prisioneiro despertou de seu pesadelo diário e reincidente nos últimos 15 anos ao reconhecer o seu nome entoado com todas as letras:

    - Última chamada: visita para o detento Tarquínio Esperidião.

     Ele caminhou lentamente para a sala de visitas, após ser algemado pelo guarda de plantão e sentou-se na cadeira desconfortável reservada ao preso, enquanto via aproximar-se uma jovem de seus 20 anos, com tranças e um conhecido olhar cinza penetrante, hipnotizador, paralisante, pois, do contrário, teria se levantado e corrido de volta para o fundo de sua cela. A moça sentou-se a seu lado e perguntou sem mais cerimônias:

    - Como está o senhor, papai?

    - Papai?!

    - Sou eu, a Maria Amélia. Cresci, não é verdade? Mas será que mudei tanto assim? Não se preocupe. Eu o perdoo. As pessoas fora de si fazem coisas malucas, não é mesmo?

     Tarquínio constatou, mais uma vez, não ser páreo para a bruxa que fez dele gato e sapato por tantos anos e o induziu a praticar crimes que o elevaram à categoria de monstro nas manchetes e na gritaria da mídia sensacionalista. Ali estava, sentada diante de si, a responsável por tudo de ruim que tinha acontecido em sua vida, os assassinatos que praticou, tudo. E o olhava com a determinação de quem vai fazer um pedido que não aceita outra resposta a não ser o sim. Lembrou-se até do rosto de Marlon Brando, encarnando o padrinho do Coppola, prometendo a seu afilhado, que dizem ter sido Frank Sinatra em pessoa:

    - Vamos fazer uma oferta que ele não pode recusar.

    E Tarquínio ouviu da moça a confirmação de seu receio, a ordem, com jeito de pedido, a ser atendida:

    - Papai, vou precisar mesmo, muito mesmo, de sua ajuda para chegar onde quero chegar. Não é ainda agora, mas não vai demorar muito e esperar é coisa que o senhor aprendeu, não é verdade? Recompensa? Claro que o senhor será recompensado. Quem sabe eu possa mexer os pauzinhos até mesmo para libertá-lo. O senhor nem imagina o meio em que estou metida.

    - Libertar-me! Libertar-me como? Já passei dos 60 e tenho mais de 100 para cumprir. Deixe-me em paz, esqueça-se de mim. Faça de sua vida o que quiser. Estou fora, fora, ouviu? Você, seja lá quem for, nunca devia ter voltado aqui. Guarda! A visita terminou, leve-me de volta à cela.

    - Não faça escândalo. O senhor é responsável por mim e vai me ajudar. Mamãe, quando viva, dizia sempre: “Maria Amélia, não estamos sós, seu pai vai cuidar de nós e é você, minha Fihinha, que vai tirá-lo da prisão”. Fihinha, ela sempre me chamou de Fihinha. Foi um doce de pessoa e até sua morte foi bonita. Lembra-se da rosa de sangue que aflorou em suas costas quando o senhor deu aquele tiro doido? Bem, estou aqui para pedir sua ajuda e já conto também com o apoio da Dra. Maria da Anunciação.

    Tarquínio arregalou os olhos quando o guarda se aproximou, perguntando o que havia acontecido. Com um sinal da mão, o prisioneiro insinuou que tudo estava bem. A curiosidade tinha vencido a indignação, a repulsa, o ódio que nutria por aquela figura esbelta, exibindo duas enormes tranças que lembravam a moda do início do século passado, mas que, em Maria Amélia, não tinham nada de démodé ou de vulgaridade. Tarquínio perguntou:

    - A Dra. Anunciação? Como é que você se meteu com essa manipuladora de gente?

Os olhos cinza de Maria Amélia irradiavam zombaria antes da resposta:

    - Papai, o senhor sabe muito bem a resposta. Foi o senhor que a colocou em meu caminho. É um amor de pessoa. Está sendo de um valor sem preço no trabalho que estou desenvolvendo na faculdade sobre os seres natos com capacidade de influenciar outros seres.

    - Influenciar? Por que você não diz logo dominar, controlar, manipular? Ou, quem sabe, espezinhar? E que diabo você está estudando?

    - Por enquanto, psiquiatria. Mas não vou parar por aí e o senhor vai me ajudar a chegar onde quero chegar. Pai é para essas coisas, não é?

    Seria realidade? Seria um pesadelo? Tarquínio manteve-se, até o resto da entrevista, paralisado, os olhos arregalados e fixados nos de Maria Amélia, um olho- com-olho para ver quem iria piscar primeiro. Se fosse em praça pública, dir-se-ia que estavam encenando. Por fim, diante da determinação opressora do olhar imóvel da moça de tranças, Tarquínio abaixou a cabeça e mal ouviu o guarda se aproximar para dizer que a visita tinha terminado. Enquanto ela saía dizendo que voltaria para uma nova visita, o estupor cedeu lugar a uma pontinha de curiosidade. Queria saber qual era o plano da bruxinha e o que ela poderia fazer para livrá-lo de quatro sentenças condenatórias, valendo, na prática, por uma prisão perpétua.

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